Dia Internacional de Prevenção às Lesões por Esforços Repetitivos em 28 de fevereiro serve de alerta sobre adoecimento
Por ACS/CR em 27/02/2015
Após 11 anos desossando coxas, Valdirene Gonçalves da Silva não aguentou mais. Sempre muito dedicada a sua atividade, o processo de adoecimento foi evoluindo sem que ela pudesse modificar o seu ritmo de trabalho e o número de horas dedicado por dia à tarefa em que se especializara. Canhota, sofria com uma rotina de dor e cãibras, mas, na empresa, não acreditavam em sua dor. Por muito tempo, ela tentou superá-la e manter o ritmo intenso de trabalho. Toda manhã seu marido puxava e esticava seu braço, depois abria sua mão para que ela pudesse fazer seu trabalho no frigorífico, até que chegou o dia em que não conseguiu abrir mais os dedos: os nervos de seu braço esquerdo atrofiaram. Vítima de LER/Dort (Lesões por esforços repetitivos / Distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho), seu caso se tornou conhecido ao ser apresentado no documentário Carne e Osso.
Neste 28 de fevereiro, Dia Internacional de Prevenção às Lesões por Esforços Repetitivos, a história de Valdirene serve mais uma vez de alerta sobre esse adoecimento ligado à organização do trabalho, com seu ritmo intenso, sem pausas, com metas abusivas. Infelizmente não se trata de um caso isolado. A Pesquisa Nacional de Saúde 2013, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), aponta que 2,4% dos entrevistados referiram diagnóstico médico de LER/Dort. Considerando o universo de 146,3 milhões de pessoas com mais de 18 anos representado pela pesquisa, estima-se que cerca de 3,5 milhões de pessoas têm ou já tiveram essa doença diagnosticada.
Segundo dados da Previdência Social, em 2006, somente 19.956 benefícios acidentários foram concedidos para pessoas com doenças do sistema osteomolecular e do tecido conjuntivo. Em 2007, esse número subiu para 98.415, passando para 117.353 em 2008. O aumento ocorreu devido à adoção do critério epidemiológico para a caracterização do nexo causal entre a doença e o trabalho, o chamado Nexo Técnico Epidemiológico – NTEP.
“Com a implementação do NTEP, as estatísticas da Previdência Social retrataram a situação sobre a qual se tinha conhecimento, mas não se tinha registro em nível nacional. Houve um grande aumento do reconhecimento do caráter ocupacional para determinados tipos de adoecimento, entre os quais aqueles relacionados às LER/Dort, o que mostra a importância do conceito epidemiológico para o estabelecimento do nexo causal entre uma doença e o trabalho”, explica a pesquisadora da Fundacentro, Maria Maeno.
A partir de 2009, observa-se uma tendência de queda na concessão de benefícios acidentários ligados às doenças do sistema osteomolecular e do tecido conjuntivo. Em 2013, foram concedidos 76.400. Na avaliação da profissional, essa tendência merece uma investigação. “Devemos estudar se houve queda real de ocorrência das LER/Dort no país, diminuição do acesso dos segurados aos benefícios ou um aumento da subnotificação do caráter ocupacional. Em alguns ramos econômicos, como no caso dos bancos, embora as LER/Dort sejam ainda importantes, houve diminuição de postos de trabalho com exigências de movimentos repetitivos, concomitantemente ao aumento da pressão por alcance de metas crescentes, o que resulta em aumento de outras manifestações de adoecimento, como os transtornos psíquicos”, completa Maeno.
Já os dados de acidentes do trabalho do Anuário Estatístico da Previdência Social de 2013 apontam a ocorrência de 101.814 casos de lesões e doenças do sistema osteomuscular e do tecido conjuntivo. Esses dados incluem acidentes sem CAT (Comunicado de Acidente de Trabalho) registrada e utiliza os códigos da Classificação Internacional de Doenças – CID.
Outra questão a ser avaliada é o impacto da Medida Provisória 664 sobre os pacientes com LER/Dort. O trabalhador passa a ter direito ao auxílio doença a partir do trigésimo primeiro dia do afastamento da atividade. Os primeiros trinta dias serão pagos pela empresa. “Trabalhadores com doenças crônicas que, nos momentos de crise precisam de 20, 25 dias de afastamento não serão computados pela Previdência Social”, avalia a médica.
Assim elas não seriam incluídas como doenças ocupacionais pelo INSS, o que pode levar à diminuição do FAP (Fator Acidentário de Prevenção) de cada empresa, à diminuição das alíquotas do RAT (Riscos Ambientais do Trabalho) do ramo econômico e das ações regressivas contra as empresas que causam adoecimentos. “Também a terceirização das perícias, que poderão ser realizadas por médicos contratados pelas empresas, mediante convênio com o INSS, poderá ser mais um elemento de contribuição à subnotificação de doenças ocupacionais, entre as quais, as LER/Dort”, finaliza a pesquisadora.
Doença Invisível
Para a pesquisadora da Fundacentro, Thaís Barreira, a LER/Dort tem sido naturalizada. Nos anos 1990, havia campanhas sindicais e uma preocupação em mostrar que esse processo de adoecimento poderia ser interrompido precocemente. Os trabalhadores eram alertados para reconhecer os sintomas que afetavam, principalmente, os membros superiores (mãos, punhos, braços, antebraços, ombros e coluna cervical), como fadiga muscular, alteração da sensibilidade, sensação de peso, perda de controle de movimentos, dificuldade para encostar a ponta de um dedo em outra ponta, formigamento e dor. “Temos que ter atenção para receber as pessoas em seus primeiros estágios para que o adoecimento não se torne irreversível”, alerta Barreira.
Já a tecnologista da Fundacentro Baixada Santista, Juliana Oliveira, destaca os aspectos sociais da LER/Dort: “É uma doença invisível”. Doutora em sociologia pela USP, ela discute hoje, no prédio da Fundacentro em Santos, os problemas que os trabalhadores enfrentam devido a LER/Dort com sindicalistas da região. “Vamos distribuir um kit com publicações da Fundacentro e fazer uma discussão para que eles repliquem essa conscientização entre seus sindicatos e percebam a presença da LER/Dort em sua categoria”, explica Oliveira.
Invisibilidade e naturalização andam lado a lado. “Banalizar a LER/Dort é muito grave. Está se naturalizando a doença como se a sociedade, trabalhadores e empresas nada podem fazer para se contrapor intervindo nas condições de trabalho adoecedoras”, critica Thaís Barreira, que é fisioterapeuta, mestre em Ergonomia e doutora em Políticas Públicas em SST.
Esse tipo de adoecimento está ligado à produção e às condições físico-materiais do posto de trabalho. “Mas se as melhorias materiais em instrumentos, ferramentas e postos de trabalho são insuficientes, ainda não vemos qualquer mudança na organização do trabalho, na pressão por metas de produção que acarretam sobrecarga muscular, fator do trabalho abordado na revisão da NR 17 em 1990, e que perpetua a intensificação do trabalho”, completa a pesquisadora.
Há assim uma disseminação em todas as categorias que têm um trabalho manual intensivo, abrangendo trabalhadores do comércio, de telemarketing, de frigoríficos, da indústria da alimentação, de calçados, bancários, jornalistas, entre outros. Mesmo trabalhadores autônomos que trabalham em casa e intensificam o ritmo para receber uma remuneração melhor são atingidos, desde jornalista freelancer à terceirização em indústrias de calçado e vestuário.
“A pesquisa técnica já demonstrou as fontes que geram o problema. É necessário voltar-se para o aspecto político e mobilizar os atores sociais para uma possibilidade real de prevenção”, acredita Thaís Barreira, que participou do processo de construção daNR-36, norma regulamentadora voltada para os trabalhadores de frigoríficos. A NR abordou questões como a necessidade de pausas no trabalho. Outra norma referência para LER/Dort é a NR 17 sobre ergonomia e seus anexos I (operadores de checkout) e II (teleatendimento e telemarketing).
“A forma de organização tem que ser considerada, mas tem ficado evidente que isso é letra morta. O problema ainda existe em proporções exageradas. As pessoas se sentem impotentes para mudar situações adoecedoras”, conclui Barreira.
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FONTE: Fundacentro
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