Faz tempo que quero escrever algo sobre essa cultura da “ciência
salame” e sobre o debate da “quantidade x qualidade” na avaliação da
produção científica e da qualidade científica de pesquisadores no
Brasil. Não preciso mais … o biólogo Fernando Reinach (colunista do
Estadão e um dos pioneiros da biotecnologia no Brasil) já fez isso por
mim, com muito mais competência do que eu seria capaz de fazer, devo dizer.
Copio abaixo o artigo publicado por ele na edição de sábado do jornal, que já tem mais de 10 mil compartilhamentos no Facebook, mas que merece ter muito mais ainda.
Abaixo do artigo do Reinach, copio também um artigo publicado em junho do ano passado na revista Trends in Ecology and Evolution,
em que os autores discutem a “obsessão da academia com quantidade”. Ele
faz parte de um fórum de discussão lançada pela revista em março deste
ano para debater o tema “Que tipo de ciência queremos?“, que inclui um comentário de biólogos brasileiros da Universidade Federal de Goiás.
Publicar muita porcaria ou publicar pouca coisa boa? Eis a questão. (não só na ciência, mas no jornalismo também)
Atualização: Outra dica de leitura sobre o assunto é um artigo do
Prof. Tomás de Aquino Portes, também da UFG, publicado pelo Jornal da
Ciência da SBPC, com o tíulo “Salami Science vs. Ping Pong Science”: http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.php?id=91320
Darwin e a prática da ‘Salami Science’
Fernando Reinach / O Estado de S.Paulo
Em 1985, ouvi pela primeira vez no Laboratório de Biologia Molecular a
expressão “Salami Science”. Um de nós estava com uma pilha de trabalhos
científicos quando Max Perutz se aproximou. Um jovem disse que estava
lendo trabalhos de um famoso cientista dos EUA. Perutz olhou a pilha e
murmurou: “Salami Science, espero que não chegue aqui”. Mas a praga se
espalhou pelo mundo e agora assola a comunidade científica brasileira.
“Salami Science” é a prática de fatiar uma única descoberta, como um
salame, para publicá-la no maior número possível de artigos científicos.
O cientista aumenta seu currículo e cria a impressão de que é muito
produtivo. O leitor é forçado a juntar as fatias para entender o todo.
As revistas ficam abarrotadas. E avaliar um cientista fica mais difícil.
Apesar disso, a “Salami Science” se espalhou, induzido pela busca
obsessiva de um método quantitativo capaz de avaliar a produção
acadêmica.
No Laboratório de Biologia Molecular, nossos ídolos eram os cinco
prêmios Nobel do prédio. Publicar muitos artigos indicava falta de rigor
intelectual. Eles valorizavam a capacidade de criar uma maneira
engenhosa para destrinchar um problema importante. Aprendíamos que o
objetivo era desvendar os mistérios da natureza. Publicar um artigo era
consequência de um trabalho financiado com dinheiro público, servia para
comunicar a nova descoberta. O trabalho deveria ser simples, claro e
didático. O exemplo a ser seguido eram as duas páginas em que Watson e
Crick descreveram a estrutura do DNA. Você se tornaria um cientista de
respeito se o esforço de uma vida pudesse ser resumido em uma frase: Ele
descobriu… Os três pontinhos teriam de ser uma ou duas palavras: a
estrutura do DNA (Watson e Crick), a estrutura das proteínas (Max
Perutz), a teoria da Relatividade (Einstein). Sabíamos que poucos
chegariam lá, mas o importante era ter certeza de que havíamos gasto a
vida atrás de algo importante.
Hoje, nas melhores universidade do Brasil, a conversa entre
pós-graduandos e cientistas é outra. A maioria está preocupada com
quantos trabalhos publicou no último ano – e onde. Querem saber como
serão classificados. “Fulano agora é pesquisador 1B no CNPq. Com 8
trabalhos em revistas de alto impacto no ano passado, não poderia ser
diferente.” “O departamento de beltrano foi rebaixado para 4 pela Capes.
Também, com poucas teses no ano passado e só duas publicações em
revistas de baixo impacto…” Não que os olhos dessas pessoas não brilhem
quando discutem suas pesquisas, mas o relato de como alguém emplacou um
trabalho na Nature causa mais alvoroço que o de uma nova maneira de
abordar um problema dito insolúvel.
Essa mudança de cultura ocorreu porque agora os cientistas e suas
instituições são avaliados a partir de fórmulas matemáticas que levam em
conta três ingredientes, combinados ao gosto do freguês: número de
trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram citados na
literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de citações a
trabalhos publicados na revista). Você estranhou a ausência de palavras
como qualidade, criatividade e originalidade? Se conversar com um
burocrata da ciência, ele tentará te explicar como esses índices
englobam de maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não adianta
argumentar que Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos por esses
critérios. No fundo, essas pessoas acreditam que cientistas desse
calibre não podem surgir no Brasil. O resultado é que em algumas
pós-graduações da USP o credenciamento de orientadores depende
unicamente do total de trabalhos publicados, em outras o pré-requisito
para uma tese ser defendida é que um ou mais trabalhos tenham sido
aceitos para publicação.
Não há dúvida de que métodos quantitativos são úteis para avaliar um
cientista, mas usá-los de modo exclusivo, abdicando da capacidade
subjetiva de identificar pessoas talentosas, criativas ou simplesmente
geniais, é caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas
pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes. Essa atitude
isenta os responsáveis de tomar e defender decisões. É a covardia
intelectual escondida por trás de algoritmos matemáticos.
Mas o que Darwin tem a ver com isso? Foi ele que mostrou que uma das
características que facilitam a sobrevivência é a capacidade de se
adaptar aos ambientes. E os cientistas são animais como qualquer outro
ser humano. Se a regra exige aumentar o número de trabalhos publicados,
vou praticar “Salami Science”. É necessário ser muito citado? Sem
problema, minhas fatias de salame vão citar umas às outras e vou pedir a
amigos que me citem. Em troca, garanto que vou citá-los. As revistas
precisam de muitas citações? Basta pedir aos autores que citem artigos
da própria revista. E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser
entender a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é
medíocre ou genial, pouco importa. Mas a ciência brasileira vai bem, o
número de mestres aumenta, o de trabalhos cresce, assim como as
citações. E a cada dia ficamos mais longe de ter cientistas que possam
ser descritos em uma única frase: Ele descobriu…
……
Adademia’s obsession with quantity
1 Faculty of Sustainability, Leuphana University Lueneburg, Scharnhorststrasse 1, 21335 Lueneburg, Germany
2 Deakin University, School of Life and Environmental Sciences, 221 Burwood Hwy, Burwood, VIC 3125, Australia
We live in the era of rankings. Universities are being ranked,
journals are being ranked, and researchers are being ranked. In this era
of rankings, the value of researchers is measured in the number of
their papers published, the citations they received, and the volume of
grant income earned. Academia today is governed by one simple rule: more
is better.
The idea to reward those who are productive seems fine at face value,
but that idea has become ideology. Metrics of quantity once were the
means to assess the performance of researchers, but now they have become
an end in their own right. Ironically, once individuals actively pursue
certain indicators of performance, those indicators are no longer
useful as independent yardsticks of what they were once meant to
measure.
Only a few years ago, a researcher publishing ten papers a year was
considered highly productive. Now, leading researchers in ecology and
evolution publish 20, 30, or, in some cases, over 40 papers a year, with
a tendency for further increases. This volume of papers is attained via
large laboratory groups and research consortia, which in turn require
massive amounts of funding. Given that successful fundraising is a
trusted performance indicator in its own right, funding keeps going to
some of the biggest groups, keeping them big or growing them even
further. However, a bigger group of researchers does not necessarily
produce better science, just more of it. Thus, some research themes of
solid (but not necessarily exceptional) quality can dominate the
literature, just because they produce many papers. The type of work that
ecologists produce is also different compared with just a decade or two
ago: papers are shorter; reviews are increasingly quantitative not
qualitative; the scope of papers has shifted from local to global;
modeling papers are replacing field-based papers; and more papers focus
on black-versus-white analyses because there is no journal (or mental)
space for nuanced discussions. A recent high-profile example is the
polarized debate on whether policy should encourage land sparing or land
sharing.
The picture we paint is, of course, stylized. We acknowledge that
there are exceptions among the most productive academics, the largest
research groups, and the highest impact journals. However, despite
exceptions, the overall trend is deeply concerning. Academics are
increasingly busy with more papers, more grants, and more emails to keep
the machinery going. The modern mantra of quantity is taking a heavy
toll on two prerequisites for generating wisdom: creativity and
reflection.
Creativity greatly benefits from an environment that is supportive,
collaborative, and facilitates trialing new approaches, but suffers from
working under excessive pressure. Similarly, reflection is vital for
questioning assumptions and learning from experience. The gradual loss
of creativity and reflection necessarily will affect our science. Many
past landmark papers were full of good ideas, but were speculative and
discursive. Would such papers be published today and, if they were, who
would read them in depth? Is it possible to obtain and communicate deep
insights via ‘twitteresque’ research sound bites?
Beyond the science itself, the quantity mantra is taking a toll on
the quality of human interactions and relationships. Supervisors are
increasingly too busy to discuss ideas at length with their research
students. Academics work long hours, a supposed requirement for success,
as if insight, motivation, and wisdom could not also arise from more
balanced and family-friendly lives. The stressful environment of
academia leads to many talented young people opting out of academia, and
can lead to burnout in those who stay.
Along with political and spiritual leaders, academic leaders have a
responsibility to help society move towards a better future, where we
understand the world better, and use that understanding to live a ‘good
life’. However, how can we do this if our professional rat race just
mirrors the ills of society at large? Starting with our own university
departments (but not stopping there), it is time to take stock of what
we are doing. We must recreate spaces for reflection, personal
relationships, and depth. More does not equal better.
FONTE: blogs.estadao
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