Hoje de manhã não consegui trabalhar. Fiquei lendo as mensagens no Facebook sobre as manifestações. Muitas mensagens me levaram a ler textos e a ver vídeos. Fui ficando angustiado. De repente me veio a pergunta: “Como um pensador sistêmico entende o que está acontecendo aqui no Brasil?”. Tentei usar um pouco do meu conhecimento em pensamento sistêmico para refletir e tirar essa angústia do meu sistema.
Propriedades emergentes do sistema
Em primeiro lugar, ele diria que as manifestações são propriedades emergentes do sistema, ou seja, são materializações de uma série de relações complexas de causas e efeitos. Isso por si só acaba com os argumentos simplistas que tentam achar um ou alguns poucos motivos para os protestos. Quando procuramos um motivo, abrimos a oportunidade para polarização: concordo ou não concordo.
Além disso, se aquele “motivo” foi resolvido, é possível haver uma rápida desmobilização: “O governo diminuiu a passagem de 3,20 para 3 reais. Pronto, conseguimos!”. Não estou dizendo que essa não foi uma vitória importante do movimento Passe Livre, apenas apontando para as armadilhas que o pensamento linear pode nos pregar.
Tipping point
Outro conceito interessante do pensamento sistêmico é o tipping point ou a gota d’água. Acho que mais do que o preço das passagens, foi a truculência policial que serviu como “gota d’água” para que a maioria da população se levantasse e saísse. Atenção: a truculência não foi o único nem o principal motivo, mas apenas aquela gota que foi despejada quando já não cabia mais nada no copo.
Necessidades humanas
Pegando emprestado um conceito da Comunicação Não-Violenta proposta pelo Marshal Rosenberg e do Desenvolvimento em Escala Humana do Manfred Max-Neef, podemos entender que protestar é uma estratégia para atendermos alguma necessidade humana que está desatendida. Ir para a rua protestar atende, de alguma forma, várias necessidades, entre elas: independência, espontaneidade, auto-responsabilidade, camaradagem, ser ouvido, visto e compreendido, pertencer, participar, auto-expressão, criatividade, dignidade, sentir-se vivo, ter esperança.
É possível argumentar que muitas pessoas foram para as ruas enfrentando frio, chuva, cansaço e violência para poder experimentar alguns momentos do que significa ter essas necessidades atendidas. Isso porque os diversos sistemas dos quais somos parte não atendem essas necessidades no dia a dia. Acordamos todos os dias para trabalharmos em algo que não nutre nossas necessidades de criatividade, ser ouvido, ser espontâneo. Vivemos com pressa e sem tempo para longas conversas com amigos (camaradagem). Estamos distantes das decisões políticas que nos afetam (auto-responsabilidade e participação).
Nós enquanto criadores de realidade
Mas, compreender melhor os sistemas que não suprem as nossas necessidades é só o começo. Depois disso, é necessário um olhar para cada um de nós e o entendimento que, de alguma forma, nós é que criamos esse sistema através das nossas escolhas. Não estou dizendo que é fácil se colocar ao largo de forças poderosas, cujo objetivo é perpetuar e acelerar uma cultura de consumismo, nos fazer aceitar trabalhos dos quais não gostamos, colocar nossos filhos desde que são bebês em creches por 8 horas para que possamos trabalhar para o “bem” deles. Às vezes queremos nos enganar e dizemos que é para o bem da sociedade e do planeta, pois temos trabalhos importantes. Aceitamos viver em cidades superpopulosas, poluídas e violentas pois os “mehores empregos” estão lá, pois as “melhores escolas” estão lá e porque as “melhores atrações culturais” – às quais raramente vamos – estão lá. E como chegamos em casa cansados, aceitamos ficar assistindo novela, pois afinal de contas precisamos nos distrair. Aceitamos votar ano após ano em vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e presidentes sem saber exatamente qual é a proposta deles e o que eles defendem. Depois da eleição, aceitamos ficar passivamente à margem do processo político e só nos revoltamos quando existe uma denúncia de corrupção aqui e ali. Dia após dia, nossos representantes gastam o tempo discutindo e aprovando projetos que na melhor das hipóteses são inúteis e na pior são prejudiciais. Mas ninguém tem tempo para acompanhar isso. E o sistema é todo montado para dificultar a participação popular.
Pós-indignados, pós-occupy, pós-passe livre?
O que está acontecendo na Espanha pós-indignados? E nos EUA pós-occupy? Sinceramente, não sei. Saiu do meu radar. Parou de aparecer no meu Facebook, nos jornais e na televisão. Com certeza houve conquistas e avanços, mas creio que foram superficiais. A imagem que me vem é de uma panela de pressão. Ao invés de diminuir o fogo, o que fizemos foi empurrar um pouco o bico para sair a pressão. Quando a pressão for aliviada, voltamos pra dentro da panela. Pode ser que o governo e a TV diminuam um pouco o fogo, até que as coisas se tranquilizem. Mas depois, no dia a dia, nas pequenas decisões do cotidiano, as coisas voltam ao “normal”, mas agora com mais cuidado para a panela não estourar.
Manifestações em nossa vida
Você já fez regime de 1 semana, emagreceu 5 quilos e depois ganhou 7? Essa é outra imagem que vem à cabeça. É mais fácil ter uma atitude radical, mas que não se sustenta, do que criar um hábito. Eu acredito que a potência para mudança vem de uma combinação desses dois movimentos: tirar o grito que está entalado na garganta e depois sentar e abrir o diálogo, dia após dia, com nós mesmos, com nossos filhos, nosso(a) companheiro(a), nossos amigos, no trabalho, no bairro, com nosso representante na câmara. Entretanto, criar espaços e tempo para diálogo requer mais do que vontade, requer mudanças na nossa relação com o tempo, com o dinheiro, com o corpo, com as artes, com o trabalho. Quem perde a paciência e grita com nossos filhos somos nós, quem come alimentos que nos prejudicam somos nós, quem vende a alma em trabalhos sem significado somos nós. Além de protestar nas ruas, vamos abrir alas para manifestações transformadoras em nossas vidas. Manifestações pacíficas, com aceitação – e até gratidão, para fazer frente ao conservador, ao medroso, ao corrupto e ao violento que nos habita.
FONTE: sustentabilidadenaempresa
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